O porquê da limitação

Este artigo foi escrito pela reitora Ana Dayse Resende Dórea, publicado no Jornal Gazeta de Alagoas em 20/07/2008.

Honrando sua tradição e prestando mais um serviço à sociedade alagoana, a Gazeta de Alagoas, numa edição dominical recente, lançou luzes sobre as precariedades vivenciadas pelos vizinhos (habitantes das áreas em nosso entorno) do campus da Universidade Federal de Alagoas na capital.

Pesquisadores, professores e estudantes, como bem ressaltou a reportagem, há muito realizam atividades de ensino, pesquisa e extensão as quais direta, indireta ou transversalmente, tratam de temáticas voltadas a reverter os lastimáveis indicadores sociais destas populações, carentes de tudo.

Este esforço traz resultados refletidos em ações imediatas ou em concretos diagnósticos essenciais para fundamentar políticas públicas em áreas vitais como saúde, educação, habitação e infra-estrutura. Neste sentido estamos cumprindo nosso papel. Como centro de formação e irradiador de saberes, estamos executando nossa missão institucional.

Mas por quais motivos, então, não conseguiríamos ajudar nossos vizinhos? Quem responde é a própria matéria. Nestas comunidades, entre as quais a chamada Cidade de Lona que se converteu em vexatório exemplo, as ações da Ufal esbarram na quase ausência do Poder Executivo estadual e municipal. Em muitas delas, o quadro de miséria é contundente demais. As mazelas são pulverizadas demais. A exclusão é acentuada demais.

E na maioria delas décadas de inércia e inanição de sucessivos governos vêm comprometendo o desenvolvimento das ações acadêmicas capitaneadas pela Ufal, chegando muitas vezes a inibir a aplicação de orientações derivadas de pesquisas ou a execução de projetos concebidos no ambiente acadêmico. E aí reside o porquê da limitação narrada, com pertinência, por aquela reportagem.

Enquanto universidade, nos fazemos presentes e atuantes, colaborando com destemor e com trabalho sério, inseridos no cotidiano dos que nos cercam e dando nossa parcela de auxílio rumo a condições dignas de vida para essas comunidades. Entretando, se unilateral, nosso empenho perde em força, em alcance e em longevidade.

Os resultados de nossa iniciativa serão quanto mais perceptíveis na medida em que contemos com mais dinamismo por parte do Estado e do município, em especial deste último. Não temos nos furtado de nosso compromisso, principalmente o da extensão junto a essas populações.

Porém, necessitamos de respostas mais ágeis por parte das administrações públicas, parceiras e protagonistas que são deste processo.

As Bicicletas de Belleville

Um conselho para os admiradores – e também não – admiradores – da sétima arte: se quiserem se emocionar assistam à animação “Bicicletas de Belleville”, de Sylvain Chomet; garanto que ninguém vai sentir falta de muitas palavras para deixar umas lágrimas deslizarem pelo rosto.

As Bicicletas de Belleville conta a história de um garotinho muito triste que é adotado por uma senhora idosa chamada “Madame Souza”. O nome do menino é “Champion” – campeão em francês –, e vive seus dias preso a uma melancolia desencantadora. Madame Souza faz de tudo para alegrá – lo, mas ele sempre demonstra desinteresse pelas prendas apresentadas pela boa velhinha, a exemplo de um cachorro, “Bruno”. Após muitas teimosas tentativas, Madame Souza descobre que Champion tem um forte interesse por bicicletas, e dá uma ao menino. A partir de então, a entusiasmada senhora submete o garoto a uma árdua Maratona de treinamentos, até que ele – já crescido – se torna um grande ciclista e chega a participar de uma importante competição, a Tour de France. É justamente nesse evento que Champion e outros dois ciclistas são seqüestrados por uns excêntricos sujeitos trajados de preto. Madame Souza, dando conta do fato, empreende uma busca arriscada – alucinante pelo jovem, e para isso, conta com a ajuda do obeso cachorro Bruno e das “Trigêmeas de Belleville”, que faziam sucesso nos cabarets na década de 30, entoando belíssimas e animadas canções.

Como fora escrito no parágrafo anterior, não haverá necessidade de muitas palavras para encantar/emocionar ao telespectador, pois sendo o filme pobre de muitas palavras, é bastante rico em ensinamentos e poesia nos gestos dos personagens. O próprio fato de o garoto ser chamado Champion já chama a atenção. O menino é pobre materialmente e demonstra uma sequidão interior causada, provavelmente, pela falta de carinho recebido daqueles que vieram antes de Madame Souza. Mesmo assim, ele é tratado por campeão, e a boa senhora faz de tudo para que ele se supere a cada dia e realize os seus sonhos.

A animação mostra um aspecto muito interessante, que é justamente a tentativa de negação daquilo imposto pela sociedade capitalista unidimensional: enquanto o mercado e suas leis jogam as pessoas já “não – produtivas” para as beiradas sociais, Madame Souza e as Trigêmeas de Belleville apontam que o ser humano é muito mais do que aquilo que o Capitalismo sustenta; ele é capaz de amar, de fazer arte, de ensinar, enfim, de ser querido não pelo tanto que produz, mas pelo o que é. Numa sociedade marcada pelo consumismo, como a de Belleville, em que tudo gira em torno do “ter mais” para parecer “ser mais”, as quatro aventureiras se preocupam em tirar Champion das garras daqueles que querem fazê – lo mera peça de uma engrenagem de fazer dinheiro.

O filme é um elogio aos avós. Tanto é que Sylvain Chomet dedica-o aos seus parentes. Ali os idosos não são vistos como operários imprestáveis, mas como pessoas de sabedoria acumulada, abertos a mostrarem aos mais novos a importância de romper com os valores de uma sociedade tecnicista e excludente.

Eu lembrei da minha avó, e de algumas lições tidas por irracionais pela nossa sociedade esquizofrênica, como repartir um ovo de codorna para 6 pessoas (!). Ao escutar a história (com h) eu penso que o ato foi mais simbólico do que provedor: o que vale é fazer o outro sentir – se parte da roda, valorizado e estimado acima de qualquer coisa. Foi isso o que Madame Souza e as Trigêmeas de Belleville fizeram, é isso o que os avós comumente fazem.

Política e Ciências Sociais

Aristóteles já dizia, na antiguidade, que o homem é um animal político. Um ser que por natureza tende para a vida em sociedade. Ora, essas duas afirmações estão bastante interligadas, veja-se por que: sozinho, seguindo a linha de pensamento aristotélica, o homem não se realiza como tal; é preciso que ele constitua sociedades, pois aí sim irá desenvolver todas as suas potencialidades. Mas com a sociedade, é preciso estabelecer certas regras a serem seguidas e certos objetivos a serem alcançados; eis aí a tarefa do político: participar das decisões da Polis – cidade – afim de determinar como se deve viver e, ainda no bojo do pensamento do estagirita, o que fazer para alcançar a virtude, que na sua concepção seria o “agir para todos”.

Conforme o Minidicionário Luft, Política é a “ciência do governo dos povos e dos negócios públicos”. É lícito esmiuçar essa definição. Conforme o parecer do grande filósofo já citado, o homem só se realiza como homem na vida política; não basta viver em comunidade, é preciso participar das deliberações sobre essa comunidade. Quando se fala em “animal político”, é preciso atentar para o fato de que aquele que participava das discussões sobre os negócios públicos era visto como o “homem”, ao passo que aqueles excluídos das instâncias deliberativas – escravos, mulheres, estrangeiros – eram também privados de receberem essa nomenclatura. Em síntese: homem é aquele que participa da vida política; aquele que não participa é um ser incompleto.

Desde a antiguidade pode-se notar a delimitação da ação política. O próprio Aristóteles vai mencionar três formas de exercer o poder, podendo-se observar suas respectivas delimitações: Monarquia – um governa; e a participação popular? Aristocracia – os melhores governam; quem é considerado “melhor” e por que os outros não se encaixam nesse perfil? Democracia/ Governo Constitucional – todos exercendo o poder; nem todos, os mais gabaritados. Dessa forma, a ação política é sempre marcada pela representatividade. O povo consente em fazer-se representado politicamente.

Essa linha de raciocínio vai atravessar os séculos, e chegando à época dos filósofos contratualistas, encontrará um forte eco. Os três grandes contratualistas de que se tem notícia – Hobbes, Locke e Rousseau – vêem a ação política como incumbência do Estado, que é a instituição abarcadora dos interesses de todos – essa concepção de Estado sofrerá pesadas críticas da parte de Marx e Engels. Não menosprezando a insigne contribuição dos dois ingleses, é bastante plausível observar o posicionamento do escritor e filósofo genebrino. Rousseau, citado por Lopes Ferreira, afirma que “no momento em que o povo se faz representar não é mais livre”, e que “ninguém pode querer por ninguém” (p. 37). Esse grande pensador chama a atenção para um fato muito provocativo: o povo não é mero espectador; é o autor das decisões políticas e o destinatário das mesmas! Já que algumas pessoas são requisitadas para agir em nome do povo, é preciso fazê-las perceber que os interesses vigentes devem ser os do povo e não os seus particulares.

A crítica de Karl Marx e Friederich Engels a essas concepções contratualistas constitui o despontar de paradigmas inovadores na Política. Para esses pensadores alemães, o Estado é a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns. O Estado continua sendo uma instância de grande importância política, mas só não é visto como expressão de toda a sociedade, e sim expressão de uma parcela dessa sociedade, a saber, a classe que detém a posse dos meios de produção, a Burguesia.

Essa nova postura frente ao Estado também foi criticada. Pensadores neo – marxistas questionaram se o Estado é mesmo um “comitê para gerir as coisas dos burgueses”. Alguns sustentaram que não; que o Estado representa mais do que os interesses da classe detentora do poder material. Há, inclusive, teóricos que preferem falar de “grupos dominantes” ao invés de “classes dominantes”, visto que nas sociedades modernas as formas de agir político estão se configurando de diferentes formas, e não dá para olvidar – a contento de uns – do poder cultural, do poder religioso, etc.

O que marca nessa sucinta análise das formas de vivenciar a Política é a tendência a tomá-la como “coisa” distante dos indivíduos “comuns”. Paira uma auréola na cabeça daqueles que representam politicamente o povo, como se aqueles fossem “intocáveis”. Note-se bem: foi escrito “representam”, e não qualquer outra coisa que lembre “ditam” ou “manuseiam”.

A Política deve fazer – se mais próxima do povo, e aí entra a sua função nas Ciências Sociais. Bertolt Brecht já dizia que o pior analfabeto é o analfabeto político. Pior porque o indivíduo desconhecedor das ações políticas é constantemente tratado como massa de manobra. É explorado de forma absurda, e ainda pensa que isso se deve a alguma interferência transcendental, quando na verdade os homens que se julgam paladinos da justiça para todos se valem da insensibilidade de uns e outros para buscarem o auto – beneficiamento. Rousseau já alertava para isso, é o povo o criador das leis e também o seu público – alvo. A Política, como importante ciência social, deve dissecar na frente das pessoas das variadas partes da sociedade a Política como ação prática – note-se a diferenciação feita: Política como ciência social e Política como ação. As pessoas precisam saber que devem participar ativamente das decisões sobre a vida coletiva. Devem fazer – se íntimas do sistema de governo da nação, a fim de usarem os artifícios certos para conseguirem os seus direitos.

A Política, assim como a Antropologia e a Sociologia, trata de fatos referentes ao homem em sociedade. Ainda lembrando Brecht, mostra que até o preço do feijão que sacia o homem tem a ver com a ação política. Por isso, é de suma importância fazer com que o saber político seja bastante forte na academia e que o mesmo dialogue com os anseios de toda a sociedade, visto que o desinteresse político pode gerar inúmeros prejuízos para um país, como por exemplo, no caso do Brasil, políticos pagarem suas contas com dinheiro de procedência duvidosa ou enriquecerem “da noite para o dia”, só porque estão “representando o povo”.

“O homem é um animal político”, defendeu Aristóteles. Fica o clamor para que todos os homens reconheçam – se partícipes da confecção de uma vida justa e igualitária, e o saber político é imprescindível para isso. O ideal é que ele alcance as escolas, as igrejas, os clubes, enfim, todos os espaços em que os homens são levados a pensar suas práticas sociais. Sendo assim, será notório que o Estado – preocupação de todos os pensadores citados aqui – deve ouvir os apelos da população, afinal, como assertou Jean – Jacques Rousseau, ali há “(...) ‘funcionários’, empregados ou comissários, não os senhores do povo.”

 
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